4.ª Conferência: A razão da fé: Existe uma religião verdadeira ?

  1. Introdução.

    • O descrédito da Igreja Católica. No começo do terceiro milénio, o Cristianismo enfrenta uma profunda crise na cultura ocidental, onde a sua pretensão de possuir a verdade não só não parece convencer como atrai sobre a sua pretensa arrogância intelectual alguma desconfiança e hostilidade. Na realidade, não parece possível que o ser humano conheça a verdade sobre Deus, nem muito menos razoável que alguém, ou algum grupo religioso, pretenda possuir toda a verdade. Nesse propósito de impor uma visão particular como se fosse a totalidade da realidade, a Igreja Católica estaria a agir de uma forma néscia e particularmente intolerante em relação a todas as outras expressões religiosas.

    • Do cepticismo científico ao simbolismo cristão. O cepticismo moderno parece confirmado pela ciência: a teoria da evolução desautorizou a doutrina da criação, como também o conhecimento acerca da origem do homem superou a questão do pecado original. Também na teologia se realizaram algumas modificações de grande alcance: uma certa exegese «católica» reviu e relativizou a figura de Jesus e considera duvidosa a fundação da Igreja pelo próprio Cristo, ao contrário do que durante vinte séculos se disse e pacificamente aceitou.

      A consequência da desmontagem científica da fé cristã é a sua redução ao nível de uma mera simbologia, um conjunto de mitos que não admitem qualquer tipo de leitura ou interpretação científica. A religião católica não seria mais do que uma forma de experiência religiosa, a par de muitas outras: uma singular expressão do sentimento religioso universal.

      Um paladino desta visão da Igreja Católica é Ernst Troeltsch, que considera o Cristianismo como o perfil europeu do rosto de Deus. Proclama também a impossibilidade de conhecer os mistérios divinos. Por este motivo, também não é possível comparar as diversas religiões: para atestar a qualidade de uma reprodução é preciso conhecer o modelo, mas como ninguém conhece Deus, ninguém pode também dizer qual a religião que melhor compreende o Criador.

    • Conclusão. A estas críticas, há que replicar dizendo que não é crível que o homem não possa conhecer o que lhe é essencial. Faz todo o sentido, por isso, a pergunta sobre a verdade do Cristianismo.

  2. O Cristianismo como teologia física ou natural.

    • A natureza da religião em Marco Terêncio Varrão. Marco Terêncio Varrão, que nasceu no ano 116 e faleceu no ano 27 antes de Cristo, afirmava a existência de três modalidades teológicas: a teologia mítica, que é a que corresponde aos poetas; a teologia física ou natural, de que se ocupam os filósofos ou cientistas quando indagam sobre a realidade; e a teologia civil ou política, que é a que se refere à prática religiosa, ou seja, ao modo como os povos decidem prestar culto aos seus mitos e heróis.

      A religião é, nesta perspectiva, o objecto da teologia civil ou política, mas nada tem que ver com a doutrina dos filósofos ou o saber dos cientistas. Aos sacerdotes não se pede que digam o que as coisas são, mas o que se deve fazer para o bem comum. Chega-se assim ao paradoxo de a religião nada ter que ver com Deus e o conhecimento de Deus (ou do mundo, de que Deus seria a alma) nada ter que ver com a religião. Mas esse Deus que a teologia natural conhece e estuda é apenas algo, mas não é ninguém: é fogo ou água, são átomos ou números, ou quaisquer outros elementos da natureza, mas nunca um ser pessoal, com o qual seja possível estabelecer uma relação.

    • O Cristianismo, «religio vera». Já na tradição da patrística do século II se observa que a religião cristã não é encarada pelos próprios padres apologistas como mais uma religião, um novo mito ou uma mais perfeita simbologia poética, mas como uma nova teologia física, ou seja, uma nova explicação «científica» e «filosófica» da realidade. Por isso, mesmo sem negar a cultura judaica como seu antecedente, o Cristianismo considera-se também herdeiro da ilustração filosófica grega, em que se baseia mais do que nas antigas religiões. Aliás, não há contradição entre essas duas tradições: o monoteísmo bíblico tinha sido de algum modo antecipado pelos filósofos gregos, que chegaram também, por via filosófica, à necessidade de um ser criador, um primeiro Motor.

      É neste sentido que, desde os seus inícios, o Cristianismo se apresenta como sendo a verdadeira religião, a «religio vera»: não se baseia em mitos, nem obedece a exigências de ordem política, mas apenas e só no conhecimento. A fé cristã converteu, por assim dizer, a ilustração em religião, adora o «Deus real», vence os mitos e afirma a vitória do conhecimento e, portanto, da verdade, sendo por este motivo universal, não como uma religião que é o estandarte de um povo ou de uma cultura, mas como a verdade que suplanta a aparência, como a luz que desvanece as trevas.

      A este propósito, é significativo recordar que os primeiros cristãos foram condenados não por terem outra religião, mas por não terem nenhuma, ou seja, por serem «ateus»! Foi por essa razão que foram considerados inimigos do Estado e martirizados: a sua falta de veneração «religiosa» às autoridades constituídas foi entendida como um acto de desobediência e até de rebeldia.

  3. A fé à luz da razão.

    Se é verdade que o pensamento filosófico anterior ao Cristianismo preparou o caminho para a fé cristã, também é certo que a fé cristã, por sua vez, aprofundou e esclareceu algumas conclusões a que já tinha chegado o conhecimento filosófico anterior.

    • Deus pessoal. A filosofia tinha chegado à conclusão da existência de Deus como primeiro Motor, mas um Deus a que se chega apenas através da razão não é ainda um Deus a quem se reza. O Cristianismo completa essa certeira conclusão monoteísta com a revelação de um Deus pessoal, alguém que fala e actua e, por isso, pode ser também objecto de uma relação pessoal.

    • A universalidade da verdade. A partir do momento em que a religião deixou de se identificar com a cultura de um povo e passou a ser o conhecimento da realidade, ganhou também uma nova dimensão: a universalidade. Na realidade, a verdade não é património de nenhuma nação, raça ou civilização, porque é património da humanidade, é universal. O monoteísmo é uma verdade universal, como universal é também o Cristianismo, ao contrário do judaísmo, que obedecia ainda a uma lógica nacional.

      Quando S. Justino abraça a fé é porque nela reconhece a filosofia verdadeira, o conhecimento da realidade: a sua conversão não corresponde a uma atitude de desprezo pela razão ou de abandono da filosofia que tinha cultivado, mas como o culminar do seu itinerário filosófico em direcção à verdade que, uma vez alcançada, já não se pode deixar.

    • A natureza. Quando Deus é identificado com a natureza, todas as forças naturais são expressões do querer divino, que subjugam o homem e o reduzem à insignificância da sua condição. O Cristianismo afirma a existência de Deus e da natureza, mas Deus não é a natureza, nem a natureza Deus, ainda que em Deus tenha a sua origem e causa última. O homem fica assim liberto dos seus antigos temores e aprende a dominar a terra que, sendo de facto criatura de Deus, lhe foi entregue para que a dominasse, sujeitando-a ao poder da sua razão.

    • A História. O Deus que é a alma do mundo, ou que se confunde com a natureza, não é uma personagem histórica, mas alguém distante com quem seria impossível estabelecer qualquer relação pessoal. Pelo contrário, o Deus cristão é um Deus que entrou, por força da sua encarnação, na História dos homens: porque Ele veio ao encontro dos homens, os homens podem ir ao Seu encontro.

  4. A vitória que vence o mundo: a nossa fé.

    Muito embora o processo de afirmação da fé no mundo pagão seja complexo, é possível destacar alguns aspectos do Cristianismo que influíram mais decisivamente para a sua afirmação no mundo pagão.

    • A racionalidade do discurso cristão. Em virtude da coerência racional das suas próprias teorias, o Cristianismo surge no mundo pagão com o estatuto de um novo e verdadeiro conhecimento – «vera religio» porque «philosophia vera» – que, por este motivo, é universal.

    • A excelência da moral cristã. A moral cristã, ao contrário de outras propostas menos realistas, não ignora o que está escrito no coração do homem: ao mesmo tempo conhece a sua grandeza e a sua fragilidade. É, por assim dizer, uma moral ajustada à realidade humana: não é utópica, porque não ignora a sua fraqueza e debilidade; mas também não é pessimista, porque sabe que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus e está chamado à santidade.

    • O testemunho da caridade. A perspectiva filosófica ou teórica foi superada pela prática da caridade, ou seja, pela observância do duplo mandamento, que obriga amar a Deus e ao próximo. Do mesmo modo como a fé se une à razão, também a acção, a vida, está chamada a vincular-se à caritas cristã.

    • Conclusão. «O vigor do Cristianismo, que o converteu em religião universal, consistiu na sua síntese entre a razão, a fé e a vida; é precisamente esta síntese a que se apela quando se menciona a “religio vera”».

4 de Junho de 2008.

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