1.ª Conferência: A PROBLEMÁTICA ACTUAL DA FÉ

  1. A crise da teologia da libertação.

    • Os pressupostos teóricos da teologia da libertação. A chamada teologia da libertação surge aproximadamente em 1980 e pretende apresentar uma nova formulação teórica e prática da redenção. Ao contrário do que era tradicional na teologia católica, que entendia a salvação sobretudo como aplicação pessoal dos méritos de Cristo por mediação da sua Igreja em ordem à salvação eterna da alma individual, a teologia da libertação entende a evangelização como um processo essencialmente político, de alteração das estruturas de um mundo opressor, entendidas como estruturas de pecado e do mal. Com efeito, no seu entendimento, se o pecado se manifesta socialmente através de estruturas de opressão, a sua superação não pode ser realizada mediante uma conversão pessoal, mas apenas através da luta contra as estruturas injustas, que são, afinal, a causa da opressão e da injustiça social. De acordo com esta leitura, a redenção converte-se num processo político de libertação, ao mesmo tempo que a fé deixa de ser mera doutrina e passa a ser encarada como acção, uma acção que se define redentora na medida em que opera a libertação dos oprimidos.

      Para este efeito, a teologia da libertação recorre à filosofia marxista, que lhe oferece uma metodologia da acção revolucionária, que procura utilizar como um método de evangelização que não apenas redima os corações dos homens mas também transforme a própria sociedade, sobretudo naqueles países de maioria cristã em que, não obstante a fé professada pela maioria dos seus habitantes, predominavam formas de exploração.

    • O colapso do marxismo e a crise da teologia da libertação. A queda do muro de Berlim, depois da estrepitosa derrocada do regime comunista na Polónia e, mais tarde, de todos os regimes pró-soviéticos da Europa do leste significou, como não podia deixar de ser, uma grave crise para a teologia da libertação latino-americana, na medida em que esta invocara os méritos da revolução marxista para fundamentar a sua própria praxis.

      Talvez alguém possa objectar que o insucesso da aplicação da teoria marxista num conjunto de nações ocidentais não teria por que implicar a falência do respectivo modelo teórico, de modo análogo a como também uma má experiência liberal ou conservadora não inabilita necessariamente os pressupostos ideológicos do liberalismo ou do conservadorismo. A questão, contudo, não pode ser apresentada desse modo porque o marxismo, ao contrário de outras ideologias políticas, apresentou-se a si mesmo como científico e, sobretudo, como praxis, ou seja, não como uma nova explicação do fenómeno social ou da questão do poder, mas como um novo método de transformação da sociedade. Ao apelar para a eficácia dos seus mecanismos como único fundamento da sua própria teoria política, o marxismo estava a impossibilitar o seu julgamento em qualquer sede filosófica e, ao mesmo tempo, a remeter para o tribunal da história, o seu próprio julgamento. Aliás, a sua pretensão científica deve ser interpretada no mesmo sentido: do mesmo modo como a uma explicação científica que não seja corroborada pela experiência não pode ser admitida como provada, pelo menos por quem entende que o método experimental é essencial para o conhecimento científico, o marxismo, enquanto «ciência», só admitia uma legitimação fáctica e, na ausência desta, ficaria reduzido a coisa nenhuma.


  2. A filosofia dominante: o relativisimo.

    • O relativismo político. A partir dos conceitos de tolerância, diálogo, respeito pelos outros, o relativismo nega a possibilidade de uma verdade absoluta e universal, ao mesmo tempo que se afirma como o fundamento filosófico da democracia. É aceitável que, em questões opináveis, se evite uma absolutização do poder, como propunha o marxismo, mas nem tudo o que é político é opinável, na medida em que há limites objectivos que não podem nem devem ser ultrapassados, como é o caso dos direitos humanos, por exemplo.

    • O relativismo ético e religioso. Para além deste relativismo político, importa sublinhar o relativismo ético e religioso, que se expressa modernamente na teologia pluralista das religiões. Segundo esta corrente, hoje em dia muito em voga, todas as religiões são verdadeiras como todas são também passíveis de excessos condenáveis. Assim sendo, não faz sentido a defesa de uma verdade religiosa objectiva, nem muito menos qualquer tentativa de expansão ou de imposição de uma religião: o proselitismo de carácter religioso seria expressão de uma mentalidade intolerante e, por isso, profundamente anti-religiosa, enquanto incapaz de compreender o outro na sua diferença.

    • Crítica. Como é óbvio, esta atitude confunde dois planos que importa destrinçar: o dos princípios religiosos, que é susceptível de debate e de confrontação; e o dos crentes, em que, não obstante a eventual falta de fundamentação objectiva das concretas opções religiosas, há que respeitar escrupulosamente a liberdade das consciências. Mas esse respeito, como é óbvio, não impede o verdadeiro proselitismo, como o respeito pelo ignorante também não se opõe a um saudável empenho pela sua formação.


  3. O relativismo teológico e as suas implicações cristológicas.

    • A fundamentação filosófica do relativismo teológico. O relativismo teológico é uma derivação de um certo cepticismo de matriz kantiana: na medida em que a realidade em si mesma nunca pode ser conhecida enquanto tal, todo o conhecimento se resolve na sua manifestação. Aplicado à teologia, o relativismo nega a possibilidade de um verdadeiro conhecimento de Deus que, enquanto o absolutamente Outro, não pode ser de nenhum modo conhecido ou abarcado pela inteligência humana. Neste mesmo sentido, Jesus Cristo não pode ser entendido senão de uma forma também relativista, ou seja, não é o Deus vivo, a realidade de Deus presente no mundo dos homens, mas uma mera manifestação do divino, aliás análoga a outras expressões igualmente válidas, como seriam os fundadores das outras grandes religiões. Qualquer pretensão dogmática ou afirmação da divindade de Cristo resulta fundamentalista e um ataque ao espírito moderno, que é de diálogo e de tolerância. Fica também excluída a priori a possibilidade do apostolado ou da missão, na medida em que todas as atitudes religiosas seriam equiparáveis, pelo que não faria sentido promover a conversão.

    • Crítica. Mais uma vez importa sublinhar que não se pode confundir o plano objectivo com o subjectivo: o respeito por todas as crenças não pode implicar uma indiferença em relação aos seus conteúdos respectivos. Por outro lado, a pretensão dogmática da religião católica decorre da revelação: se é verdade que o ser humano não tem capacidade de por si mesmo conhecer a essência divina, também é certo que o próprio Deus se pode revelar ao homem e este conhecimento, na medida em que não é humano mas divino, constitui uma verdade absoluta.


  4. O fascínio das religiões asiáticas.

    • A teologia negativa oriental. É recorrente, nas religiões orientais, a convicção de que o divino não pode, em caso algum, entrar em contacto com o mundo das aparências, que é o nosso. A sua renúncia ao dogma e até a qualquer formulação do mistério de Deus, resultaria, por um lado, como uma homenagem à absoluta transcendência do Criador e, por outro, como um ponto de partida válido para um efectivo entendimento entre todos os homens. Neste sentido, o relativismo surge como um efectivo encontro de culturas e de religiões: todas as crenças são válidas, não tanto na medida em que afirmam alguma coisa sobre a realidade transcendente, mas sobretudo porque favorecem uma atitude de diálogo e de respeito por todas as manifestações de carácter religioso. Uma tal atitude seria até susceptível de dar lugar a uma nova religião universal, baseada na tolerância. Para esse efeito, seria necessário desprender-se de filiações religiosas particulares, como a Igreja Católica, na medida em que impedem a superação dos particularismos religiosos e culturais.

    • Crítica da nova religião mundial. Ainda que seja de saudar o propósito de unir todos os homens numa mesma religião, como pretendem os defensores de uma nova religião mundial, é evidente que esse desejo não pode ser realizado a qualquer preço. Por outro lado, a aposta numa religião minimalista, que escusa não só a definir a essência divina como até a reconhecer a sua existência, como acontece em algumas religiões asiáticas, não parece vantajosa, nem sequer em termos culturais. Só a união na verdade pode ser verdadeiramente redentora porque só a verdade liberta.


  5. Ortodoxia e ortopraxis.

    • A superação do dogma na praxis. Quando se fala em religião, tende-se a entender uma determinada doutrina ou ortodoxia: um conjunto de princípios a que se atribui uma eficácia transcendente. Contudo, para o relativismo, a religião não é sobretudo nem principalmente uma teoria, mas uma atitude, um modo de estar na vida. Neste sentido, as religiões orientais, que não conhecem uma determinada ortodoxia, um credo que se professa, mas na prescrição de uns actos rituais a que se obrigam os crentes. O homem religioso, para os asiáticos, é por isso o homem manso, humilde, caridoso, etc., qualquer que sejam as suas convicções acerca do divino ou da vida eterna. Traduzidos estes conceitos para a modernidade, segundo os princípios do relativismo, exigir-se-ia ao homem religioso moderno uma atitude de tolerância e de respeito pela liberdade, sem contudo definir os limites dessa tolerância ou o fundamento último dessa mesma liberdade.

    • Crítica da religião como ortopraxis. É verdade que nenhuma religião se afirma apenas com princípios teóricos, mas também é verdade que a prática religiosa pressupõe uns determinados princípios doutrinais de ordem teológica e moral. Reduzir a religião a uma mera atitude comportamental é relegá-la ao âmbito das convenções sociais e negar a sua especificidade enquanto entendimento do divino e prática da salvação. Por último, a tolerância bem como a liberdade, não obstante o seu valor intrínseco, carecem uma fundamentação, sem a qual não é sequer possível a sua implementação.


12 de Março de 2008.